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A legítima defesa e o esquartejamento



 
            Caiu como um petardo na mídia: a tese do advogado de Elize Matsunaga em plenário será a da legítima defesa. O fato é de conhecimento notório: apontada como uma ex-garota de programa, ela era casada com Marcos Kitano Matsunaga, tendo-o matado e depois desmembrado o corpo, jogando fora os despojos. A acusação que pesa contra ela tem três frentes: homicídio triplamente qualificado, destruição e ocultação de cadáver. São crimes autônomos, cada um fruto de uma vontade livre e consciente, cada qual praticado como unidade autônoma. Tão logo a notícia foi postada nas “redes sociais”, começaram as manifestações de ignorância, fazendo-me lembrar as palavras de Umberto Eco: “a internet deu voz aos imbecis”.
      Como tenho escrito incontáveis vezes neste espaço, a legítima defesa é uma causa de exclusão da ilicitude (por alguns autores chamada de “antijuridicidade”), em que, se o fato praticado tiver respeitado os requisitos constantes do artigo 25 do Código Penal, ele não considerado delituoso. Essa causa de afastamento da ilicitude pode, a princípio, ser aplicada a qualquer delito, mas na prática é praticamente impossível porque dificilmente – “impossivelmente”, na verdade – nesses crimes faltaria um requisito da legítima defesa, o da agressão injusta. Por exemplo, não se pode alegar legítima defesa num crime de roubo (este crime tem a seguinte definição: “subtrair, para si ou para outrem, mediante o emprego de violência ou grave ameaça, coisa alheia móvel”, conforme o artigo 157 do Código Penal): o ladrão estaria se defendendo de qual agressão? Porém, poderia ocorrer outra causa de exclusão da ilicitude, o estado de necessidade.
      Nos crimes de destruição e ocultação de cadáver é óbvio – ululante, como dizia Nelson Rodrigues – que não cabe a alegação de legítima defesa por faltar em ambos um dos requisitos essenciais ao seu reconhecimento, a agressão injusta: como poderia um cadáver agredir (nem injusta, nem injustamente) alguém? Quanto a essas duas acusações, é incabível a alegação dessa excludente: o principal componente dos crimes em questão é a morte da “vítima”
      Porém, quanto ao crime principal, o homicídio, e que foi a causa da prática dos outros, é perfeitamente cabível a alegação dessa excludente da ilicitude e, ademais, o seu reconhecimento pelos sete jurados (não precisa ser por todos: basta a maioria de votos). No meu livro “Casos de júri e outros casos” relato alguns casos em que atuei na defesa do acusado e os jurados, por maioria, reconheceram a legítima defesa, absolvendo o acusado. Aliás, no crime de homicídio, seja ele simples, privilegiado ou qualificado, tentado ou consumado, é que mais ocorre essa exclusão da ilicitude.
      No caso de Elize, ainda que os jurados reconheçam que ela agiu para se defender de uma agressão injusta e atua, usando moderadamente os meios necessário, e a absolverem, essa decisão não afastará a ilicitude dos delitos que sucederam o homicídio, os praticado contra o cadáver, que terão votação em separado feita pelos jurados.
      Também é evidente que poderão os senhores jurados rechaçarem a tese de legítima defesa quanto ao crime de homicídio tendo em conta as provas que serão apresentadas. Mas dizer que é um absurdo essa alegação é desconhecer não só o Direito, mas os fatos postos sob julgamento.
            Segue abaixo um dos capítulos do livro:


A vítima sem um braço

            Edna, quando foi julgada pelo Tribunal do Júri de Campinas, na segunda metade da década de 80, estava com AIDS: foi a primeira pessoa que eu defendi contaminada com essa terrível moléstia (nos anos 2000 defendi outras; apenas em 2002 foram três pessoas). E, naquela época, era tremendamente letal. Mas ela havia sobrevivido à doença e era acusada de haver matado uma mulher que tinha uma vasta folha de antecedentes, recheada de crimes contra o patrimônio; não faltavam crimes contra a pessoa, na modalidade lesão corporal dolosa. Detalhe: a vítima não tinha um braço.
            Edna nunca negou haver matado a vítima (portanto, em termos de autoria, não havia discussão); afirmava, porém, tê-lo feito para defender-se de injusta agressão perpetrada por aquela. Encerrada a instrução, ela foi pronunciada.
            No dia do julgamento, a tese da defesa obviamente seria a da legítima defesa própria. Porém, o Ministério Público discordou, dizendo que houvera excesso[1] na legítima defesa. Falou durante as duas horas regulamentares (era característica desse Promotor de Justiça, que era extremamente leal e respeitoso). Na minha fala regulamentar, não utilizei todo o tempo dado à defesa, que é igual ao tempo dado à acusação (creio nunca ter, nos inúmeros júris em que atuei, utilizado as duas horas). Mas destaquei aos jurados um detalhe: a vasta folha corrida da vítima; estiquei-a no chão do plenário, para bem impressionar os jurados: era enorme. E, completei: ela fez tudo isso com um braço só; imaginem se ela tivesse os dois.
            O Promotor pediu a réplica, em que se pode falar mais trinta minutos. É hábito no Tribunal do Júri o Juiz de Direito presidente acionar a campainha para lembrar o profissional que esteja falando, seja a acusação, seja a defesa, quando faltam dez minutos; depois novamente quando faltam cinco; e finalmente, quando se esgotou o tempo. E o Juiz fez isso. Após o último aviso, o de que tempo se esgotara, o Promotor continuou falando e excedeu-se em cinco minutos. Ao me ser dada a palavra, iniciei a minha fala chamando a atenção dos jurados para o fato de que o Promotor, num ambiente tranqüilo e seguro como aquele, havia deliberadamente cometido um excesso: como ele poderia pretender que os jurados reconhecessem excesso na conduta da acusada – e a condenassem – durante uma briga ocorrida à noite, num bairro afastado, contra uma pessoa perigosa? Havia uma incongruência no pedido. O Promotor apenas sorriu. E logo encerrei.
      Levados à sala secreta, os jurados absolveram Edna, reconhecendo que ela não agira com excesso ao defender-se de injusta agressão, atual, a direito seu, no caso, o direito à vida.
            Excesso, no caso, houve apenas o do Promotor de Justiça: excedeu-se no tempo que a lei determina para que a acusação seja feita.

     
     


[1] . O excesso pode ser classificado como doloso ou culposo; se for doloso, a pessoa, caso seja condenada, será tida como se tivesse praticado um homicídio doloso; se for culposo o excesso, o homicídio será culposo. As penas são grandiosamente diversas; homicídio doloso: de 6 a 20 anos de reclusão; homicídio culposo: de 1 a 3 anos de detenção.

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