Mostrando
que no Brasil até respeitadas publicações “comem barriga”, ou, como dizia o
ministro do Supremo Tribunal Federal Nelson Hungria, cognominado “príncipe dos
penalistas brasileiros”, autor (e, em alguns volumes, coautor) da magnífica
obra “Comentários ao Código Penal”, “tomam a nuvem por Juno”, explodiu na mídia
a notícia, com manchetes garrafais, de que o Supremo Tribunal Federal descriminalizou
o aborto desde que a gravidez seja interrompida até o terceiro mês de gestação.
Nada mais enganoso.
Realmente,
houve um julgamento, mas se tratava de um pedido de “habeas corpus" o de
número 124.306, relator o ministro Luiz Barroso, da 1ª Turma da mais alta corte
de justiça brasileira. A “causa petendi” do, para usar um jargão jurídico, “remédio
heroico”, era a revogação de uma prisão preventiva decretada, num processo sobre aborto, em segunda
instância no estado do Rio de Janeiro e mantida no Superior Tribunal de
Justiça. A ordem de “habeas corpus” foi concedida de ofício e em seu voto o
ministro relator teceu algumas considerações sobre a inconstitucionalidade da criminalização do aborto,
que no Brasil existe desde há muito tempo: pra fixarmos um tempo, desde os idos
de 1940, que é de quando é o Código Penal (entrou em vigor no dia 1° de janeiro
de 1942). Existem três tipos de aborto: auto aborto, aborto consentido e aborto
sem consentimento (da gestante). Todavia, nada sobre a inconstitucionalidade foi decidido.
Desde
então têm sido feitas tentativas legislativas para descriminalizar a interrupção,
infrutíferas todavia. Uma delas, descriminalizando parcialmente, pois versava somente sobre fetos anancefálicos, foi um projeto de lei apresentado pela "companheira grelo duro" Jandira Feghalli.
A
única descriminalização da interrupção da gravidez decidida pelo STF foi no
caso em que o feto seja anencefálico e tal ocorreu na Ação de Descumprimento de
Preceito Fundamental (ADPF n° 54, proposta pela Confederação Nacional dos
Trabalhadores da Saúde). Até então, embora o feto fosse inteiramente inviável à
vida extrauterina, a gestante era obrigada a suportar todo o tempo da gravidez
até o nascimento. Trabalhei nesse tema vários anos: eu era o Procurador do
Estado encarregado de requerer à Vara do Júri da comarca de Campinas a autorização
para a interrupção da gravidez quando o feto era inviável. As gestantes eram
encaminhadas pelo CAISM com toda a documentação médica (exames e laudos) e era
feito o pedido, sempre deferido. Somente um foi indeferido e não pelo juiz
titular, que estava de férias, mas sim por uma juíza substituta, e se tratava
de feto hidranancefálico[1].
Eu estava de férias e o pedido foi feito pelo colega que me substituía. Ao
reassumir, requeri ao Tribunal de Justiça uma ordem de “habeas corpus” com
pedido de liminar para a interrupção (imediata) da gravidez. Eu não acreditava
minimamente no sucesso, visto que o tribunal se compunha de maioria católica e
de direita: a liminar não foi concedida. Requeri outra ordem, desta vez ao
Superior Tribunal de Justiça, com pedido de liminar, e, quase às vésperas do
Natal, ela foi deferida: a gestante estava no sétimo mês de gravidez. Essa era
a epopeia das gestantes com fetos inviáveis. Porém, com o julgamento da
procedência da ação, elas ficaram desobrigadas de recorrer ao judiciário. Foi a
única oportunidade em que o STF manifestou-se sobre o aborto.
Porém,
o ministro relator, Luiz Barroso, ao se manifestar sobre a interrupção da
gravidez não fez (para usar uma expressão bem ao seu gosto) “um ponto fora da
curva”: o projeto de reforma do Código Penal (um código novo, diga-se)
contempla a hipótese de que não há crime de aborto quando ocorre (artigo 128 –
exclusão do aborto, inciso IV): “por vontade da gestante, até a décima segunda
semana[2]
de gestação, quando o médico ou psicólogo constatar que a mulher não apresenta
condições psicológicas de arcar com a maternidade”.
Nas
hipóteses de “descriminalização” do aborto a ser decretada pelo Supremo, a
alegação que se fará é que os artigos do Código Penal que tratam do assunto não
foram recepcionados pela Constituição: o código é de 1940 e a constituição é de
1988. Mas este é outro assunto...
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