Pular para o conteúdo principal

A caça


            Um dos mais densos filmes que já vi, “A caça” é uma produção dinamarquesa do ano de 2012 e tem como tema central algo muito presente: a acusação de crime sexual feita por uma criança – uma aluna, no caso – contra um dos professores da escola em que estuda.
            Tudo se passa num pacato vilarejo dinamarquês em que todos se  conhecem e envolve o professor, que estava saindo de uma separação não muito amigável e que, como consequência, perdera a guarda do filho, e uma aluna, filha de seu melhor amigo. A garotinha, visivelmente interessada nele (ofereceu-lhe um coração embrulhado e atirou-se sobre ele, beijando-o na boca [um “selinho”, quando muito], sendo, porém rechaçada, e, talvez por isso, comunica, sem muita convicção ou precisão, à diretora que o professor mostrou-lhe o órgão sexual. A diretora, a princípio incrédula, interpela-o, também sem muita convicção e sem citar nenhum nome.
            A partir daí tudo evolui como uma bola de neve: a diretora a cada relato acrescenta um detalhe, a garotinha é inquirida e claramente (sem trocadilho: o seu nome é Klara...) induzida, reafirma o que dissera, os moradores do vilarejo começam a isolar o professor, a polícia é acionada, o professor é preso e... não contarei mais para que não se perca a emoção de assistir ao filme.
            Além do tema recorrente – “abuso sexual” de criança -, há outro também recorrente e uma das sete cabeças de Hidra do Direito Penal e do Direito Processual Penal: o depoimento infantil. Tal tema tem motivado o surgimento de tratados acerca da validade de tal depoimento (ou, se for vítima, declarações). O Código de Processo Penal, sabe-se de longa data, não faz restrição ao depoimento infantil, mas, por outro lado, a mente dos infantes são sempre plenas de fantasias que podem leva-los a mentir.
            Ademais, a forma pouco enfática com que o professor reage à acusação chega a irritar o espectador; talvez porque, ciente de que nada fizera e que tudo não passa de um equívoco, e que, posteriormente, tudo se esclareceria, ele não tenha se incomodado tanto com a acusação.
            A vida imita a arte e não o contrário, proclamou há muito tempo Oscar Wilde: nos Estados Unidos houve um episódio, em que algumas pessoas da mesma família, os McMartin, proprietárias de uma escola infantil, foram acusadas de crimes sexuais contra alunos. Alguns foram presos, e o julgamento, que durou aproximadamente 2 anos, resultou num “mistrial”, ou seja, os jurados não chegaram a um veredito. Também aqui as crianças foram claramente induzidas a dizer que haviam sido vítimas de crimes sexuais. A HBO produziu um filme sobre o tema, cujo nome em inglês é “Indictment: The McMartin Trial”, dirigido por Mick Jackson e com James Woods no papel principal. No Brasil tomou o título de “Acusação”. Ótimo.
            E, em São Paulo, no ano de 1994, houve o episódio “Escola Base”, em que também os seus proprietários foram acusados de crimes sexuais contra crianças. O prédio foi destruído, os proprietários presos e depois se demonstrou que tudo não passara de, além de invenção das crianças, precipitação da autoridade policial, que  estava mais preocupada em dar entrevistas do que se apurar a veracidade dos fatos. Um dos proprietários foi indenizado administrativamente (uma lei estadual, da época de Mário Covas, permite isso), recebendo uma quantia em torno de 300 mil reais; o outro preferiu percorrer as vias judiciais e a sua indenização alcançava mais de 1 milhão de reais. Receberá não se sabe quando, pois será sob a forma de precatório. 
           
Foto da fachada da Escola Base - 1994.
           

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A memória

A BBC publicou tempos atrás um interessante artigo cujo título é o seguinte: “O que aconteceria se pudéssemos lembrar de tudo” e “lembrar de tudo” diz com a memória. Este tema – a memória- desde sempre foi – e continua sendo – objeto de incontáveis abordagens e continua sendo fascinante. O artigo, como não poderia deixar de ser, cita um conto daquele que foi o maior contista de todos os tempos, o argentino Jorge Luis Borges, denominado “Funes, o memorioso”, escrito em 1942. Esse escritor, sempre lembrado como um dos injustiçados pela academia sueca por não tê-lo agraciado com um Prêmio Nobel e Literatura, era, ele mesmo, dotado de uma memória prodigiosa, tendo aprendido línguas estrangeiras ainda na infância. Voltando memorioso Funes, cujo primeiro nome era Irineo, ele sofreu uma queda de um cavalo e ficou tetraplégico, mas a perda dos movimentos dos membros fez com que a sua memória se abrisse e ele passasse a se lembrar de tudo quanto tivesse visto, ou mesmo (suponho) imaginado...

Uma praça sem bancos

Uma música que marcou época, chamada “A Praça”, de autoria de Carlos Imperial, gravada por Ronnie Von no ano de 1967, e que foi um estrondoso sucesso, contém uma frase que diz assim: “sentei naquele banco da pracinha...”. O refrão diz assim: “a mesma praça, o mesmo banco”. É impossível imaginar uma praça sem bancos, ainda que hoje estes não sejam utilizados por aquelas mesmas pessoas de antigamente, como os namorados, por exemplo. Enfim, são duas ideias que se completam: praça e banco (ou bancos). Pois no Cambuí há uma praça, de nome Praça Imprensa Fluminense, em que os bancos entraram num período de extinção. Essa praça é erroneamente chamada de Centro de Convivência, sendo que este está contido nela, já que a expressão “centro de convivência (cultural)” refere-se ao conjunto arquitetônico do local: o teatro interno, o teatro externo e a galeria. O nome Imprensa Fluminense refere-se mesmo à imprensa do Rio de Janeiro e é uma homenagem a ela pela ajuda que prestou à cidade de Campi...

Legítima defesa de terceiro

Um dos temas pouco abordados pelos doutrinadores brasileiros é o da legítima defesa de terceiro; os penalistas dedicam a ele uma poucas páginas, quando muito. Essa causa de exclusão da ilicitude vem definida no artigo 25 do Código Penal: “entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Nessa definição estão contidos os elementos da causa de exclusão em questão: uso moderado dos meios necessários; existência de agressão atual ou iminente; a direito seu ou de outrem. Como se observa facilmente, a defesa é um repulsa a uma agressão, ou seja, é uma reação a uma agressão, atual (que está acontecendo) ou iminente (que está para acontecer). Trata-se, a causa de exclusão em questão, de uma faculdade que o Estado põe à disposição da pessoa de defender-se pois em caso contrário a atuação estatal na proteção dos cidadãos tornar-se-ia inútil. Não é uma obrigação, é uma faculdade. Caso, na...