Pular para o conteúdo principal

Defecando no processo



            Essa atividade fisiológica tão comum, que nos iguala todos, tem uma série de sinônimos, seja apenas em uma palavra, seja em expressões. A palavra mais comum, verbo aliás – e chula, desculpem – é “cagar”. “Fiz uma cagada”, além do ato fisiológico, significa cometer um equívoco. Sinônimas da anterior: "fazer merda". Outra expressão menos chula – e antiga: “fazer o número dois”. Juca Chaves, quanto à sua produção musical, assim se expressava: “as minha obras são feitas no banheiro: as mais longas, sentado; as outras, de pé”. Outra expressão para o ato de defecar: “passar um fax”. Porém, este meio de comunicação está em desuso, substituído que foi pelo e-mail. Não dá para substituir uma expressão pela outra em virtude da lentidão de uma e rapidez da outra. Também o produto da atividade fisiológica tem vários sinônimos e o primeiro faz lembrar Juca Chaves: “obra”. Os antigos diziam: “a criança obrou na calça”. Um chulo: “merda”. Afirmam que os antigos artistas de teatro franceses, quando queriam desejar sorte a um colega que ia se apresentar, diziam “merde”- a Wikipedia tem uma explicação interessante para isso. “Jogar merda no ventilador” é outra expressão muito em voga, que, educadamente, é substituída por esta: “saiu (ou caiu) atirando para todos os lados".
            O título deste trabalho não é para significar que algum profissional do Direito tenha “feito merda” num processo (que, por vezes, muitas vezes aliás é feita pelo réu, ou pelo autor; em geral, todavia, no Direito Penal a “merda” antes do processo é feita sempre pelo réu, sujeito ativo da infração penal). Foi, literalmente, a “cagada” praticada por um acusado num processo que tramitou na comarca de Jaú. O réu, um “pacato cidadão”, foi surpreendido pela polícia portando ilegalmente uma arma de fogo de uso permitido. A infração não era grave e ele era primário e de bons antecedentes, o que motivou a proposta de suspensão condicional do processo (artigo 89 da Lei nº 9.099/95). O feito ficaria suspenso por dois anos, com as condições de praxe, entre as quais a de comparecer mensalmente no fórum para “assinar a carteirinha”. Na verdade, o que se assina é uma folha de comparecimento anexada ao processo. Ele aceitou-a.
            No último comparecimento – o vigésimo quarto -, e a partir daí ele estaria quite com a justiça, ele apanhou o processo, que estava no balcão, e em vez de assinar, atirou-o no chão, abaixou as calças e defecou sobre ele, arrancou uma folha, limpando-se com ela. Literalmente: “cagou” no processo. Instalou-se um corre-corre, ele foi detido, e, como sói acontecer, um cartórário sacou o telefone celular e fotografou a “obra”. Esse cartorário é meu amigo de infância (nasci em Jaú e ali morei até quase os 16 anos) e enviou as fotos.
            Pus-me a pensar: o que teria querido o réu dizer com essa atitude tão insólita e escatológica? Que o sistema punitivo é uma merda? Que ele fez merda portando uma arma de fogo ilegalmente? Talvez alguns anos que ele passasse no divã sendo psicanalisado, numa terapia freudiana (“conhece-te a ti mesmo”), pudesse explicar o ato e entendê-lo. Mas, ao que consta, ele foi novamente processado, e desta vez sem suspensão, não por medo de que ele novamente defecasse nos autos, mas sim porque ele já não era mais um réu com bons antecedentes.  


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Câmeras corporais

A adoção da utilização de câmeras corporais por policiais militares gerou – e gera – alguma controvérsia no estado de São Paulo, tendo sido feita uma sugestão que mais lembra um pronunciamento de Eremildo, o Idiota (personagem criado por Elio Gaspari): “os soldados da força policial usariam as câmeras, mas as ligariam apenas quanto quisessem”. Essa tola sugestão tem como raiz o seguinte: nas operações em que pode haver alguma complicação para o policial ele não aciona a câmera; mas demais, sim. Apenas a título informativo, muitos países do mundo tem adotado essa prática: em algumas cidades, como, por exemplo, nos Estados Unidos, até os policiais que não trajam fardas estão utilizando esses aparatos. Mas, a meu ver, o debate tem sido desfocado, ou seja, não se tem em vista a real finalidade da câmera, que é a segurança na aplicação da lei penal, servindo também para proteger o próprio agente da segurança pública (tendo exercido, enquanto Procurador do Estado, a atividade de Defensor...

A memória

A BBC publicou tempos atrás um interessante artigo cujo título é o seguinte: “O que aconteceria se pudéssemos lembrar de tudo” e “lembrar de tudo” diz com a memória. Este tema – a memória- desde sempre foi – e continua sendo – objeto de incontáveis abordagens e continua sendo fascinante. O artigo, como não poderia deixar de ser, cita um conto daquele que foi o maior contista de todos os tempos, o argentino Jorge Luis Borges, denominado “Funes, o memorioso”, escrito em 1942. Esse escritor, sempre lembrado como um dos injustiçados pela academia sueca por não tê-lo agraciado com um Prêmio Nobel e Literatura, era, ele mesmo, dotado de uma memória prodigiosa, tendo aprendido línguas estrangeiras ainda na infância. Voltando memorioso Funes, cujo primeiro nome era Irineo, ele sofreu uma queda de um cavalo e ficou tetraplégico, mas a perda dos movimentos dos membros fez com que a sua memória se abrisse e ele passasse a se lembrar de tudo quanto tivesse visto, ou mesmo (suponho) imaginado...

Legítima defesa de terceiro

Um dos temas pouco abordados pelos doutrinadores brasileiros é o da legítima defesa de terceiro; os penalistas dedicam a ele uma poucas páginas, quando muito. Essa causa de exclusão da ilicitude vem definida no artigo 25 do Código Penal: “entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Nessa definição estão contidos os elementos da causa de exclusão em questão: uso moderado dos meios necessários; existência de agressão atual ou iminente; a direito seu ou de outrem. Como se observa facilmente, a defesa é um repulsa a uma agressão, ou seja, é uma reação a uma agressão, atual (que está acontecendo) ou iminente (que está para acontecer). Trata-se, a causa de exclusão em questão, de uma faculdade que o Estado põe à disposição da pessoa de defender-se pois em caso contrário a atuação estatal na proteção dos cidadãos tornar-se-ia inútil. Não é uma obrigação, é uma faculdade. Caso, na...