Pular para o conteúdo principal

Culpa da vítima



            Em alguns crimes, a vítima (ou sujeito passivo) tem um comportamento quase decisivo em sua ocorrência. Para ficar apenas no plano geral, o das atenuantes, a pena é atenuada quando o sujeito ativo age “sob a influência de violenta emoção, provocada por ato injusto da vítima”, conforme dispõe o artigo 65, inciso III, letra “c”, segunda parte do Código Penal. No plano específico, em duas passagens há referência ao comportamento da vítima: nos crimes de lesão corporal e de homicídio, ambos os delitos chamados de “privilegiados”. Tal  modalidade de homicídio está descrita no artigo 121, § 1º, segunda parte e a rubrica superior proclama que se trata de causa de diminuição de pena. O teor é o seguinte: “se o agente comete o crime ... sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço”. Já quanto às lesões corporais, o Código Penal descreve o modo privilegiado, com os mesmos dizeres do homicídio, no artigo 129, § 4º.
            Ainda no plano geral, contudo com um alcance muito maior, há outra hipótese em que o comportamento da vítima é decisivo na aplicação da lei penal. Trata-se da legítima defesa e o alcance maior refere-se à exclusão do caráter ilícito do fato. Conforme está no artigo 25, “entende-se em legítima que, usando moderadamente dos meios necessário, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Esta excludente da ilicitude consiste uma reação, conforme claramente se vê pelo verbo repelir, a uma agressão injusta, atual (que está acontecendo) ou iminente (que está prestes a acontecer) a direito do que reage (ou de terceiro).
            Cedendo espaço ao que pregava uma ciência criada logo após a II Guerra Mundial, chamada Vitimologia, que estuda o comportamento da vítima no crime, o Código Penal passou a determinar, a partir de uma reforma (total) da Parte Geral, que, na escolha da pena na primeira fase, o juiz analisasse “o comportamento da vítima”, entre as várias circunstâncias judiciais.
            Antes dessa reforma, e numa época em o machismo era muito mais marcante do que hoje, nos crimes sexuais em que o sujeito passivo era mulher, era comum analisar o comportamento da vítima: a doutrina e a jurisprudência encarregavam-se de interpretar a lei penal com os olhos postos na conduta da vítima. Era comum especialmente no crime de sedução, hoje inexistente, e antes descrito no artigo 217, em que o sujeito passivo somente poderia ser a mulher virgem e em que o sujeito ativo aproveitava-se de sua inexperiência ou justificável confiança. Essa figura penal foi descriminalizada no ano de 2005. Também no estupro com presunção de violência por conta da idade da vítima (somente a mulher podia sê-lo), hoje estupro de vulnerável, analisava-se a conduta do sujeito passivo. Há decisões históricas do Supremo Tribunal Federal.
            Ao abordar este tema, Julio Fabbrini Mirabete (Manual de Direito Penal, volume 1) fornece muitos exemplos, alguns histriônicos: o descuidado que esquece de travar as portas do veículo, pessoas que portam grandes somas de dinheiro e as exibem, travestis, prostitutas e esposa megera. Por que não incluir a sogra? Na década de 90, na cidade de Assis, um mecânico acusado de lesão corporal contra a sogra, foi absolvido e o magistrado escreveu na sentença que sogras mereciam apanhar com mais força, com um instrumento contundente. No caso, a sogra havia interferido numa discussão do casal (qual não faz isto?).
            Deve ficar registrado que em Direito Penal, ao invés do que ocorre no Direito Civil, as culpas não se compensam.

 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A assessora exonerade

Um fato tomou a atenção de muitos a partir de domingo quando uma assessora “especial” do Ministério da Integração Racial ofendeu a torcida do São Paulo Futebol Clube e os paulistas em geral. Um breve resumo para quem não acompanhou a ocorrência: a final da Copa do Brasil seria – como foi – no Morumbi, em São Paulo. A Ministra da Integração Racial requisitou um jato da FAB para vir à capital na data do jogo, um domingo, a título de assinar um protocolo de intenções (ou coisa que o valha) sobre o combate ao racismo (há algum tempo escrevi um texto sobre o racismo nos estádios de futebol). Como se sabe, as repartições públicas não funcionam aos domingos, mas, enfim, foi decisão da ministra (confessadamente flamenguista). Acompanhando-a veio uma assessora especial de nome Marcelle Decothé da Silva (também flamenguista). Talvez a versão seja verdadeira – a assinatura do protocolo contra o racismo – pois é de todos sabido que há uma crescente preocupação com o racismo nos estádios de fu

Por dentro dos presídios – Cadeia do São Bernardo

      Tão logo formado em Ciências Jurídicas e Sociais e tendo obtido a inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil, prestei auxílio num projeto que estava sendo desenvolvido junto à Cadeia Pública de Campinas (esta unidade localizava-se na avenida João Batista Morato do Canto, n° 100, bairro São Bernardo – por sua localização, era apelidada “cadeião do São Bernardo”) pelo Juiz de Direito da 2ª Vara Criminal (que cumulava a função de Corregedor da Polícia e dos Presídios), Roberto Telles Sampaio: era o ano de 1977. Segundo esse projeto, um casal “adotava” uma cela (no jargão carcerário, “xadrez”) e a provia de algumas necessidades mínimas, tais como, fornecimento de pasta de dentes e sabonetes. Aos sábados, defronte à catedral metropolitana de Campinas, era realizada uma feira de artesanato dos objetos fabricados pelos detentos. Uma das experiências foi uma forma de “saída temporária”.       Antes da inauguração, feita com pompa e circunstância, os presos provisórios eram “aco

Influencers

A nova era trouxe, além das novidades diárias, representadas pelas redes sociais, um novo vocabulário no qual há o (a) “influencer”. Como já li em alguma parte mas não me recordo precisamente em qual, antigamente “influencer” era o pai, a mãe, o professor, o pároco, o pastor, pessoas que, de uma forma ou de outra, pelo conhecimento e proeminência que possuíam, conseguiam influenciar um sem número de pessoas. Tome-se por exemplo o professor: pelos ensinamentos transmitidos aos alunos, ele consegue influenciá-los. Na atualidade, “influencers” são muitas vezes pessoas que se tornam conhecidas por besteiras que realizam e publicam nas redes sociais, valendo notar que algumas delas mal sabem se expressar no idioma pátrio. Pode-se começar com um bom exemplo: uma dessas figuras, numa “live”, defendeu que no Brasil, desconhecendo que a legislação proíbe, fosse, por assim dizer, legalizado o partido nazista, pois assim, na sua visão, os adeptos desse totalitarismo seriam conhecidos. Mas