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Sucessão de bondades



            Kant disse que a “gratidão consiste em honrar uma pessoa devido a um benefício que ela nos concedeu” (“A metafísica dos costumes”, página 201). Nada mais justo e correto honrar uma pessoa devido a um benefício por ela a nós concedido. E quando essa forma de honrar consiste em proporcionar um benefício a alguém sem esperar qualquer gratidão em resposta ao ato praticado?
            Essa pergunta tem me ocorrido de alguns meses até esta data em virtude de alguns fatos de que tenho tomado conhecimento – e parece uma corrente, uma sucessão de bondades que está, no bom sentido, assolando o mundo.
            A primeira manifestação de bondade, de “fazer o bem sem olhar a quem”, nos dizeres do vetusto ditado popular,  de que tive conhecimento foi a do “café suspenso”. Numa cafeteria de uma cidade da Itália uma pessoa pediu dois cafés, um para ele e o outro “suspenso”. Tomou o seu café, pagou pelos dois e retirou-se. A cena repetiu-se outras vezes. Tomado de curiosidade, a pessoa que havia presenciado os episódios  indagou do dono da cafeteria o que era o “café suspenso”. Este explicou: o “suspenso” era para ser servido a uma pessoa que quisesse tomar um café e não pudesse pagá-lo. Um sem-teto, talvez...
            O segundo episódio ocorreu aqui mesmo no Brasil, aqui mesmo no estado de São Paulo, mais precisamente na cidade de Jales (já o narrei em escrito anterior): um morador da cidade, pedreiro, teve um filho envolvido em dois roubos qualificados, um contra uma farmácia, outro contra um posto de combustíveis. Foi preso. O pedreiro procurou os proprietários dos dois estabelecimentos e se propôs a pagar os prejuízos. O da farmácia atingia 300 reais; o do posto, 900. No dia em que foi pagar o da farmácia, alguém se antecipara (um comerciante da cidade) e pagou a quantia sob a condição de anonimato. Quanto ao prejuízo do posto, ele assinou 10 promissórias de 90 reais, porém não teve tempo de pagar nem a primeira: uma mulher de Florianópolis por telefone fez contato com o dono do estabelecimento, pediu-lhe o número da conta corrente e fez o depósito dos 900 reais, também sob a condição do anonimato. Outra pessoas procuraram o dono do posto – ele pensou que fosse trote – propondo-se a pagar; tantas outras procuraram o pedreiro.
            A terceira manifestação está hoje num artigo publicado pelo jornal “O Estado de São Paulo”, cujo título é “O seu hambúrguer já foi pago”. Trata-se da seguinte prática: nas filas de drive-thru em lanchonetes de cidades de vários estados norte-americanos, também do Canadá, a pessoa que está sendo atendida paga a despesa da pessoa que está atrás. O artigo, que é longo, explica as várias nuances dessa conduta que como uma epidemia tem grassado os estadunidenses. Para lê-lo, basta acessar o "link" abaixo.
            Apesar do mau momento em que vive o mundo, com uma crise de valores e sentimentos,  e em especial no Brasil, com  a roubalheira sendo política de Estado, a mentira sendo mais do que nunca a arma para conseguir ser eleito (ou reeleito, se é que me entendem), é alentador constatar que as pessoas não se deixaram contaminar por essa onda negativa e mais do que nunca praticam a bondade sem esperar gratidão, pois, nos exemplos observados, a boa ação é praticada tal qual um crime cometido às escondidas: sem que a “vítima” saiba quem foi o autor da proeza.
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,seu-hamburguer-ja-foi-pago-,1088589,0.htm
http://silvioartur.blogspot.com.br/2013/10/o-pedreiro-de-jales-e-indenizacao-pelos.html

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