Pular para o conteúdo principal

O vigia japonês



                        Ele era japonês; tinha aproximadamente 60 anos; foi admitido para trabalhar como vigia numa unidade de uma granja conhecida nacionalmente. Somente na região de Campinas, eram duas as unidades. Numa delas, ao final da avenida John Boyd Dunlop, ocorriam vários furtos e não somente, como poderia parecer, de aves: geralmente, nessas granjas há pequenas criações de outros animais, como, por exemplo, porcos.
                        Essa unidade era destinada à produção de ovos para chocar: os ovos eram apanhados e colocados nas chocadeiras elétricas para a produção de pintinhos. Há toda uma tecnologia: em cada galpão há um número certo de aves do sexo feminino para um número certo de aves do sexo masculino, a fim de que possa ser feita a “cobertura” (por assim dizer: cada galo é responsável por um número determinado de galinhas; se o número de fêmeas for maior, cai a produção). A subtração de um galo atrapalha a produção.
                        Depois de incontáveis subtrações, com registros em boletins de ocorrência no distrito policial da área, a direção daquela unidade resolveu contratar um vigia e a escolha recaiu sobre um japonês, Takashi, que mal falava o idioma português. Entregaram-lhe uma espingarda cartucheira de dois canos, calibre .20, e, obviamente, munição para a arma.
                        Certa madrugada, estava ele em seu posto quando ouviu barulho das aves num dos galpões; sorrateiramente, dirigiu-se ao local de onde provinha o barulho e ali viu uma pessoa apanhando aves e colocando-as num saco de estopa, que já continha em seu interior alguns espécimes. Sem dizer palavra, porque talvez não soubesse ou não achasse necessário, disparou contra aquele ladrão um tiro com a espingarda que portava: atingiu o ladrão nas costas, que, imediatamente, foi ao chão. Embora tenha sido socorrido, chegou ao pronto-socorro morto.
                        Instaurado o inquérito policial, foi Takashi indiciado por homicídio simples; enviados os autos ao fórum, foi denunciado e processado por homicídio simples. Atuando em sua defesa, nas poucas conversas que tivemos ele manifestava sua incompreensão por estar sendo processado por haver matado um ladrão; pela sua cultura e pela sua ótica, aquilo que havia feito configuraria legítima defesa.
                        O processo chegou a termo em sua primeira fase: Takashi foi pronunciado. Porém, voltou ao Japão e nunca pôde ser intimado pessoalmente da sentença de pronúncia. Passados muitos anos, e a granja nem mais existia, lembrei-me do caso e fui à Vara do Júri consultar os autos: havia sido decretada a sua prisão e se aguardava o cumprimento do mandado. Fiz os cálculos: o tempo decorrido era mais do que suficiente para que fosse reconhecida a prescrição retroativa; ou seja, caso fosse julgado e condenado, fatalmente a prescrição retroativa deveria ser decretada.
                        Com tais fundamentos, requeri a extinção da punibilidade pela ocorrência da prescrição retroativa em perspectiva, pleito deferido: Takashi, que mal compreendia os nossos costumes e não conhecia a nossa lei penal, não precisou cumprir um dia sequer de pena privativa de liberdade.


(Capítulo do livro "Casos de júri e outros casos", Editora Millennium.)

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Uma praça sem bancos

Uma música que marcou época, chamada “A Praça”, de autoria de Carlos Imperial, gravada por Ronnie Von no ano de 1967, e que foi um estrondoso sucesso, contém uma frase que diz assim: “sentei naquele banco da pracinha...”. O refrão diz assim: “a mesma praça, o mesmo banco”. É impossível imaginar uma praça sem bancos, ainda que hoje estes não sejam utilizados por aquelas mesmas pessoas de antigamente, como os namorados, por exemplo. Enfim, são duas ideias que se completam: praça e banco (ou bancos). Pois no Cambuí há uma praça, de nome Praça Imprensa Fluminense, em que os bancos entraram num período de extinção. Essa praça é erroneamente chamada de Centro de Convivência, sendo que este está contido nela, já que a expressão “centro de convivência (cultural)” refere-se ao conjunto arquitetônico do local: o teatro interno, o teatro externo e a galeria. O nome Imprensa Fluminense refere-se mesmo à imprensa do Rio de Janeiro e é uma homenagem a ela pela ajuda que prestou à cidade de Campi...

Legítima defesa de terceiro

Um dos temas pouco abordados pelos doutrinadores brasileiros é o da legítima defesa de terceiro; os penalistas dedicam a ele uma poucas páginas, quando muito. Essa causa de exclusão da ilicitude vem definida no artigo 25 do Código Penal: “entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Nessa definição estão contidos os elementos da causa de exclusão em questão: uso moderado dos meios necessários; existência de agressão atual ou iminente; a direito seu ou de outrem. Como se observa facilmente, a defesa é um repulsa a uma agressão, ou seja, é uma reação a uma agressão, atual (que está acontecendo) ou iminente (que está para acontecer). Trata-se, a causa de exclusão em questão, de uma faculdade que o Estado põe à disposição da pessoa de defender-se pois em caso contrário a atuação estatal na proteção dos cidadãos tornar-se-ia inútil. Não é uma obrigação, é uma faculdade. Caso, na...

Câmeras corporais

A adoção da utilização de câmeras corporais por policiais militares gerou – e gera – alguma controvérsia no estado de São Paulo, tendo sido feita uma sugestão que mais lembra um pronunciamento de Eremildo, o Idiota (personagem criado por Elio Gaspari): “os soldados da força policial usariam as câmeras, mas as ligariam apenas quanto quisessem”. Essa tola sugestão tem como raiz o seguinte: nas operações em que pode haver alguma complicação para o policial ele não aciona a câmera; mas demais, sim. Apenas a título informativo, muitos países do mundo tem adotado essa prática: em algumas cidades, como, por exemplo, nos Estados Unidos, até os policiais que não trajam fardas estão utilizando esses aparatos. Mas, a meu ver, o debate tem sido desfocado, ou seja, não se tem em vista a real finalidade da câmera, que é a segurança na aplicação da lei penal, servindo também para proteger o próprio agente da segurança pública (tendo exercido, enquanto Procurador do Estado, a atividade de Defensor...