Não se sabe exatamente em
quê estava pensando a apresentadora Fátima Bernardes quando lançou uma opção:
se um traficante e um policial feridos chegassem num hospital quem deveria ser
socorrido primeiro? Como se trata de programa de televisão gerado a partir do
Rio de Janeiro, a opção foi pelo traficante, como há décadas ocorre (conta-se
que o tráfico de entorpecentes na “cidade maravilhosa” foi “liberado” durante o
governo Brizola, sendo Secretário da Polícia Civil [ainda não existia
Secretaria da Segurança Pública] o penalista Nilo Batista, nos idos de 1987.
Neste ano, o então secretário deu uma entrevista à revista ISTOE afirmando que
a droga não era problema de polícia: para muitos, foi a senha para a liberação
do tráfico). A apresentadora não esclarece qual estava mais ferido, mas isto
pouco importa ao debate. Podia em seguida lançar uma campanha “humanitária”:
adote um traficante ferido.
Uma apresentadora que já
foi a musa do Jornal Nacional, o tele-noticiário de maior audiência noturna, e
que hoje comanda um programa de variedades incondizente com o seu passado
lançar uma tolice nessa no ar só pode estar em busca de audiência: no horário,
que é matinal, o seu programa deve estar capengando, perdendo no IBOPE para
algum programa infantil, quiçá um desenho do (eterno) Pica Pau...
Mas vamos ao que
importa: num conflito de valores entre dois direitos, ambos à vida, deve a
pessoa obrigada a agir optar por qual? A doutrina penal brasileira fala pouco
ou nada sobre o tema, ao contrário da doutrina alemã que o aborda com
profundidade. Claus Roxin, um dos maiores penalistas que já existiram, trabalha
com um exemplo muito semelhante: o médico de um Pronto Socorro recebe uma
pessoa gravemente ferida e há somente um aparelho para atendimento e ele está
sendo utilizado em outra pessoa, cujo estado não é tão grave assim, porém, se
ele for retirado dela, morrerá. Qualquer escolha feita pelo médico importará na
morte de um dos doentes.
Diz o penalista alemão
que o médico plantonista não poderá fazer a opção de desligar a máquina, já que
isso provocará a morte do paciente, e sim atender da forma que puder o doente
recém ingressado. Para o mestre germânico, a vida é um valor absoluto, não
cabendo optar entre uma ou outra. O seu pensamento ficará mais claro usando-se
o Direito Penal brasileiro, no estudo do assunto “estado de necessidade”,
descrito no artigo 24 do Código Penal, mais precisamente no exemplo antigamente
chamado “tabula unius capax”, em tradução livre a tábua de salvação que suporta
o peso de apenas uma pessoa. O exemplo é muito antigo, quando os navios eram
construídos com madeira, e um deles naufragava, sobrando entre os destroços uma tábua que comporta apenas uma pessoa. Dois náufragos lutam pela posse dela
e um deles mata o outro para se salvar: o direito espera que a contenda se
resolva e afasta a punição do que se salvou.
Para que se constate o
tamanho da asneira contida nesse “desafio” lançado pela apresentadora, o médico
do hospital não poderia – não deveria, na verdade – optar por socorrer este ou
aquele, pois a vida do traficante é tão protegida como a do policial, ou
vice-versa, de forma que tendo, na votação, as pessoas optado pela vida do
traficante, ficou claro o grave problema moral que assola a sociedade
brasileira. Tanto quanto se tivessem optado pela vida do policial: em ambos, o
direito à vida é garantido.
A infeliz “brincadeira”
feita pela apresentadora me remete ao nazismo, quando se construiu a teoria das
vidas indignas de serem vividas. Como diz a letra da música “Diário de um
detento” (Racionais MC’s): “Adolf Hitler sorri no inferno”.
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