O
Código Penal de 1940 (que entrou em vigor no ano de 1942, a 1º de janeiro)
trazia no artigo 215 – crimes contra os costumes - a descrição da conduta
criminosa chamada “posse sexual mediante fraude”. Era, por assim dizer, o
oposto do estupro, que vinha descrito no artigo 213, em que a conjunção carnal
era obtida mediante o emprego de violência ou grave ameaça. Na “posse”, a
conjunção carnal era obtida com o emprego de fraude, o que levou algum
doutrinador a apelida-la de “estelionato sexual”. A descrição típica era esta:
“ter conjunção carnal com mulher honesta, mediante fraude”, com a pena de
reclusão, de 1 a 3 anos. O artigo seguinte (216) definia o crime de atentado ao
pudor mediante fraude, assim redigido: “induzir mulher honesta, mediante
fraude, a praticar ou permitir que com ela se pratique ato libidinoso diverso
da conjunção carnal", com a pena de reclusão de 1 a 2 anos.
O
emprego do conceito “mulher honesta”, ou somente “honesta” vem de longa data,
desde as Ordenações Filipinas. Um breve histórico: descoberto o Brasil pelos
portugueses, as leis do povo descobridor começou a ter aplicação na “nova
terra”. Inicialmente, as Ordenações Afonsinas (elas levavam o nome do
soberano), depois as Manuelinas, e, finalmente, as Filipinas (Felipe II de
Portugal e I de Espanha). Seu Livro V descrevia os delitos e cominava as penas
e é possível encontrar a expressão “mulher honesta” (identicamente é
encontradiça a expressão “viúva honesta”) em algumas passagens. Uma dela: Título XVIII, parágrafo 3.
Na
lei penal seguinte, o Código Criminal do Império (1.830), entre os “crimes
contra a segurança da honra" havia o artigo 222 que tinha a seguinte redação:
“ter cópula carnal por meio de violencia ou ameaças, com qualquer mulher
honesta”. No código seguinte (1.890), entre os crimes “contra a segurança da
honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor”, havia o artigo 268 assim redigido: “estuprar
mulher virgem ou não, mas honesta”, com a pena de prisão cellular, de 1 a 6
anos. Já a consolidação das leis penais (1.932) manteve o mesmo artigo, com a
mesma redação. Finalmente, o Código Penal de 1940
continuou a empregar a expressão “mulher honesta”.
Era
um tormento aos intérpretes da lei penal quanto ao sujeito (doutrinadores)
definir o que se deveria entender por “mulher honesta”. O presidente da
Comissão Revisora do Anteprojeto do Código Penal, Nelson Hungria, assim se
expressava: “a vítima deve ser mulher
honesta, e como tal se entende, não somente aquela cuja conduta, sob o
ponto de vista da moral sexual, é irrepreensível, senão também aquela que ainda
não rompeu com o minimum de decência
exigida pelos bons costumes. Só deixa
de ser honesta (sob o prisma jurídico-penal) a mulher francamente desregrada,
aquela que inescrupulosamente, multorum libidini patet, ainda não tenha descido
à condição de autêntica prostituta” (volume 8, página 143).
Era
uma interpretação enigmática: "mínimo de decência exigida pelos bons costumes”.
Além de enigmática, extensiva, e, assim, proibida pelo princípio da reserva
legal, contudo, acatada por muitos.
Porém,
aos 7 de agosto de 2009, com a lei nº 12.015, foi feita uma profunda alteração
no título que descrevia os crimes que eram chamados de sexuais, a começar pelo
nome do bem jurídico tutelado: em vez de “costumes”, como era, passou a ser
“contra a dignidade sexual”. A herança portuguesa representada pelo conceito
“mulher honesta” foi banida do Código Penal. O “estelionato sexual” continuou a
existir (no artigo 215), porém sem qualquer referência à honestidade da mulher.
O artigo 216 foi revogado. O 215 ganhou a seguinte redação: “ter conjunção
carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou qualquer
outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima”,
com a pena de reclusão, de 2 a 6 anos. Uma observação:
anteriormente, somente a mulher honesta podia ser sujeito passivo do crime; depois da
reforma, também os homens.
Qual é esse livro do Hungria que foi citado?
ResponderExcluirComentários ao Código Penal, volume 8.
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