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Corrupção e crime hediondo

 
            No Código Penal existem duas modalidades de corrupção: a passiva e a ativa. Ambas são crimes contra a Administração Pública (Título XI da Parte Especial). A primeira vem definida no artigo 317 (e está no capítulo I – dos crimes praticados por funcionário público contra a Administração Pública) - do Título XI; a segunda está descrita no artigo 333 do capítulo II (dos crimes praticados por particular contra a Administração Pública) do mesmo título. No Código Penal da República (1890) chamava-se “peita” ou “suborno” e vinha descrita no artigo 214 e 217. Essa palavra -suborno - até os dias atuais é empregada como sinônima de corrupção.
            O conceito de crime hediondo entrou no Direito brasileiro pela “porta” da Constituição de 1988 (a “cidadã”, como gostava de se referir a ela Ulysses Guimarães), mais especificamente pelo artigo 5º, inciso XLIII: “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia  prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evita-los, se omitirem””. De início, pode ser feita uma observação: não é matéria constitucional falar sobre o concurso de pessoas (“os mandantes e os executores”), nem sobre a relevância causal da omissão (“podendo evita-los, se omitirem”).
            Os que seriam definidos como “hediondos” deveriam sê-lo em lei infraconstitucional e alguns projetos foram apresentados; eles estavam “dormitando” nas comissões até que um fato precipitou a  aprovação de um deles: o crime de extorsão mediante sequestro praticado contra um amigo do então presidente da República (Collor), o empresário Rubens Medina (“Rock in Rio”). Aos 24 de julho de 1990 foi aprovada a lei nº 8.072, cuja ementa é a seguinte: “dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do artigo 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal e dá outras providências”. Esta expressão “dá outras providências” representou aquilo que o ministro Nélson Hungria chamava de “lançar o disco além da meta”: não apenas definiu os crimes hediondos, como impôs maiores restrições aos condenados por eles, indo além daquilo que dispunha a “lei maior”: por exemplo, fixando o regime integralmente fechado para o cumprimento da pena. Depois dessa vieram outras leis definindo outros crimes como hediondos (apenas como exemplo, a lei “Glória Perez). Não caberiam neste texto. Nenhum doutrinador fez um mísero elogia à lei 8.072/90.
            Durante mais de uma década foi arguida a inconstitucionalidade dessa lei, no ponto em que não permitia a progressão, porém não sob a forma de ADIn, e todas as investidas foram rechaçadas, até que no dia 23 de fevereiro de 2006, em julgamento histórico, por 6 votos a 5, julgando o “habeas corpus” 82.959-SP, requerido por Oséas de Campos, o STF decretou inconstitucional a lei de crimes hediondos no ponto em que ela não permitia a progressão. A Lei nº 11.414, de 28 de março de 2007, modificou a lei de crimes hediondos, estabelecendo que a pena imposta por crime hediondo seria cumprida em regime inicialmente fechado.
            O simples – e cômodo – fato de converter um crime em hediondo não reduz a sua prática e isso ficou demonstrado quando foi sancionada a lei nº 8.072/90: alguns crimes definidos como tal “dispararam” nas estatísticas, tais como a extorsão mediante sequestro e o estupro, sem falar no crime de tráfico ilícito de drogas (apenas como observação: o latrocínio [roubo seguido de morte] aumentou neste semestre no estado de São Paulo). O que faz com que a criminalidade seja diminuída, seja o crime hediondo ou não, é a efetiva aplicação da lei por todos aqueles envolvidos no sistema punitivo: polícia, Ministério Público, Poder Judiciário, sistema carcerário, OAB e Defensoria Pública.
            Somente com uma aplicação efetiva da lei penal é que se conseguirá diminuir a ocorrência de crimes, sejam hediondos ou não.


           

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