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A proteção à virgindade no Direito Penal brasileiro


 
            Como já disse em trabalho anterior publicado neste espaço (“As Ordenações do Reino e a recompensa estatal”), passaram a vigorar no território descoberto a legislação do reino e elas levavam o nome do soberano; no ano de 1603 passaram a vigorar no Brasil as Ordenações Filipinas que,  em Livro V, definia os crimes de cominava as penas, chamado de “liber terribilis” tal a quantidade de crimes punidos com a pena de morte (consta que um penalista europeu indagou se havia sobrado alguém vivo no Brasil) e ali é que se pode encontrar pela primeira vez (já que as ordenações anteriores, Afonsina e Manoelinas tiveram pouca aplicação). O Título XVIII das Filipinas – “Do que dorme per força com qualquer mulher, ou trava della, ou a leva per sua vontade” – tinha, em seu parágrafo terceiro a seguinte redação: “e o homem, que induzir alguma mulher virgem, ou honesta, que não seja casada, per dadivas, afagos, ou promettimentos, e a tirar e levar fóra da caza de seu pai, mãi, Tutot, Curador, senhor ou outra pessoa, sob cuja governança ou guarda stiver  ou de qualquer outro lugar, onde andar, ou stiver per licença, mandado, ou consentimento de cada hum dos sobreditos, ou ella assi enganada, e induzida se fôr a certo lugar, donde a assi levar, e fugir com ella, sem fazer outra verdadeira força a ella, ou aos sobreditos, e o levador fôr Fidalgo, ou pessoa posta em Dignidade, ou Honra grande, e o pai da moça fôr pessoa plebea, e de baixa maneira, ou Official, assi ccomo Alfaiate, Capateiro, ou outro semelhante, não igual em condiçãoo, nem stado, nem linhagem ao levador, o levador será riscado de nossos livros e perderá qualquer tença graciosa, ou em sua vida, que de Nós tiver, e será degradado para Africa até nossa mercê”.
            A legislação penal seguinte foi o Código Criminal do Império e seu artigo 219 (que tinha o nome de estupro e estava na Seção  I do Capítulo II, intitulado “Dos crimes contra a segurança da honra”), que tinha a seguinte redação: “deflorar mulher virgem, menor de dezessete anos”. A pena variava entre os graus máximo, médio e mínimo e conforme o sujeito ativo fosse autor ou cúmplice.
            A legislação seguinte foi o Código Penal da República e debaixo do Título VIII – Dos crimes contra a segurançaa da honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor – havia o capítulo I (“da violencia carnal”), cujo artigo 268 tinha a seguinte descrição típica: “estuprar mulher virgem ou não, mas honesta”.
            Esse código foi sucedido pelo atual, cuja parte especial, a que define os crimes e comina as penas, que é do ano de 1940, porém entrou em vigor no dia 1º de janeiro de 1942. Nele, a virgindade estava no artigo 217, que definia o crime chamado “sedução”, cujo teor era o seguinte: “seduzir mulher virgem, menor de dezoito anos e maior de catorze, e ter com ela conjunção carnal, aproveitando-se de sua inexperiência ou justificável confiança”, com a pena de reclusão, de dois a quatro anos. O Título VI da Parte Especial era denominado “crimes contra os costumes”, e a sedução estava no capítulo II – “da sedução e corrupção de menores”.
            Comentando o artigo em questão, um dos membros da Comissão que redigiu o projeto de Código Penal, Nélson Hungria, assim se manifestava: “a mulher desvirginada fora do casamento perde o seu valor social. Se alguém a desposa, insciente de sua defloração, o casamento pode ser anulado (Código Civil, artigo 219, inciso VI). E lembrava um antigo provérbio alemão: “noch besse wär eines Igels Im Bett, als eine leide Braut”; em vernáculo “antes uma pele de ouriço na cama do que uma noiva deflorada”. Essa era a forma como a sociedade via a mulher deflorada e essa era a razão da dupla proteção legal, civil e penal.
            A norma penal vigeu até o ano de 2005, quando, por força da lei nº 11.106, de 28 de março desse ano, foi expressamente revogada. O projeto de lei inicial (nº 117/03) era de autoria da deputada Iara Bernardi (PT-SP) e, a princípio, modificava apenas os artigos 216, retirando a expressão “mulher honesta”,  e o 231. Durante a tramitação, foram anexados outros projetos, emendas – enfim, tudo o que compreende o processo legislativo –, revogando o artigo 217, e o parecer da CCJ da Câmara dos Deputados, redigido pelo deputado Antonio Carlos Biscaia (PT-RJ – tinha sido Procurador-Geral de Justiça do RJ) foi pela aprovação: “o artigo 217 (sedução) deve ser revogado. O CP reflete o modelo da sociedade de 1940. De lá para cá, muitos valores foram modificados e preconceitos abolidos. Manter a tipificação para a sedução é aceitar o condicionamento de uma sociedade que há mais de 60 anos entendia ser a virgindade da mulher[1] um bem juridicamente relevante”. Embora seja um parecer relativamente pobre, é de se destacar apenas que a virgindade, como nele consta, não era mais um valor que merecesse a proteção penal.
            E assim encerrou-se o ciclo de proteção do híme no Direito Penal brasileiro.

 


[1]. O homem nunca teve a sua virgindade protegida – digo isto apenas para constar.

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