Minha
família mudou-se para Campinas exatos vinte dias antes que eu completasse 16
anos: era o dia 4 de fevereiro de 1964. Pouco mais de um mês após, houve o
golpe militar: as lembranças estão nítidas até hoje na minha memória. As rádios
AM transmitindo ao vivo a movimentação dos militares e a resistência de alguns
poucos. Passando defronte ao prédio dos Correios e Telégrafos dias após, um
carro de combate (tanque de guerra, no jargão popular) do 1º BCCL estacionado
na calçada: eu mal imaginava que 3 anos depois eu estaria dirigindo um desses
blindados.
Quando
começou a repressão, o que se deu imediatamente após o golpe, vivíamos a “era
Beatles”: a moda era usar “cabelão” e eu, claro, a seguia. Seguindo ainda os
Beatles, foi incrementado o uso de entorpecente. Os militares – Campinas tinha
2 quartéis: 1º BCCl (Batalhão de Carros de Combate Leves) e 9º GCAn (Grupamento
de Canhões Anti-aéreo) – patrulhavam as ruas de Campinas e, associando o
consumo de droga com os cabelos compridos (“capelli lunghi non porta più”,
dizia uma música italiana de muito sucesso), prendiam os “cabeludos” e os
levavam aos quartel para “rasparem” os cabelos. Eu apanhava o ônibus
4-Guanabara, ao sair da aula (estudava, período noturno, no Colégio Cesário
Motta, onde hoje é o Pão de Açúcar do Cambuí), num ponto ao lado do fórum e quando
uma viatura do exército entrava nessa rua vindo da José Paulino, a saída era
correr.
Em
1967 fui chamado a prestar o serviço militar e foi justamente no 1º BCCL – fui
designado motorista de carro de combate. Um domingo de junho, 1968, fui
convidado por uns amigos para ir a uma festa junina: fomos e, claro, consumi
vinho quente e quentão. Fiquei meio “alto”. Cheguei em casa por volta de
meia-noite (precisava acordar as 5 da manhã para ir ao quartel) e por volta de
2 horas da madrugada meu pai me acordou: havia uma viatura do exército me
chamando. Vesti minha farda e fomos ao quartel: o QG do 2º Exército, no
Ibirapuera havia sido atingido por uma caminhonete Chevrolet carregada de
dinamite e morreu um soldado – Mário Kozel Filho – que tinha a mesma idade que
eu. Quem promoveu o atentado foi o grupo “terrorista” a que pertencia a
militante Estela, de nome real Dilma. Fomos para São Paulo na segunda-feira com
os carros de combate num trem chamado “auto-trem” e chegamos na estação da Lapa, mas não tivemos autorização para desembarcar. Ficamos até a
quinta-feira com a mesma farda, dormindo sentados dentro dos carros de combate
e fazendo a higiene nos banheiros dos vagões de passageiro. Como não houve mais
ataque, voltamos para Campinas mas não tivemos ordem para desembarcar: dormimos
mais uma noite daquela forma.
Vivi
os dois lados: fugindo da repressão e depois servindo numa instituição que a
fazia. Quando veio a democracia, foi uma vitória, mas não para chegar no ponto
que chegou: corrupção desenfreada. Talvez por ter vivido tudo isso é que me emocionei hoje, vendo jovens com cartazes pedindo o que é normal numa democracia: saúde, educação, segurança, menos corrupção.
Será
necessário outro movimento, desta vez não de fardados – vamos às ruas.
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