A
legislação penal brasileira permite duas modalidades de aborto: a] quando não
há outro meio de salvar a vida da gestante; b] quando a gravidez é resultante
de estupro. O primeiro é chamado necessário (pela própria lei) e o segundo é
chamado de sentimental (pela doutrina) (artigo 128, incisos I e II). O STF, na
ADPF 54, decidiu que quando se trata de feto anencefálico, a interrupção da
gravidez independe de autorização judicial (como era até antes do julgamento da
ADPF). Para a realização da interrupção da gravidez quando há risco de vida
para a gestante, o único juiz da análise da necessidade do procedimento é o
médico; quanto ao sentimental, a gestante (ou seu representante legal) é quem
pode definir se quer a interrupção ou não. No caso da anencefalia, a gestante
decide.
Para
justificar a existência do aborto sentimental, a doutrina, como, por exemplo,
Julio Fabbrini Mirabete, diz que “justifica-se a norma permissiva porque a
mulher não deve ficar obrigada a cuidar de um filho resultante de coito
violento, não desejado. Além disso, frequentemente o autor do estupro é uma
pessoa degenerada, anormal, podendo ocorrer problemas ligados à
hereditariedade” (Manual de Direito Penal, volume 2, 27ª edição, 2010, página
42). Conjunção carnal não desejada, gravidez indesejada. Para que seja operada
a interrupção, basta a vontade da vítima do estupro, não sendo necessária
autorização (como durante muito se pensou e se exigiu), nem mesmo de sentença
condenatória.
Está
em tramitação desde o ano de 2007 (já houve um projeto – o mesmo, aliás –
apresentado por outro deputado no ano de 2005) um projeto de lei, cujos autores
são dois deputados, um do PT, outro do PHS, chamado de “Estatuto do Nascituro”
e este projeto revogava, no artigo 12, o aborto sentimental. E revogava porque tinha
o seguinte teor: “é vedado ao Estado e aos particulares causar qualquer dano ao
nascituro em razão de um ato delituoso cometido por algum de seus genitores”.
Se eu estiver ainda no meu juízo perfeito (creio que perfeito não está...), o
estupro é crime (“ato delituoso praticado) e o estuprador é genitor (“por
qualquer de seu genitores”), e “é vedado ao Estado e aos particulares causar
qualquer dado ao nascituro” - o aborto não causa dano, ele causa todo o dano. Perante
essa redação, não havia outra interpretação: revogaria o artigo 128 do Código
Penal que permite o aborto sentimental. O artigo seguinte, o 13, ditava algumas
regras de como deve ser tratado o “nascituro concebido em ato de violência” (sim,
reconhece que a mulher foi violentada e que como causa dessa violência ela
engravidou): direito prioritário à assistência pré-natal, bem como direito a
uma pensão alimentícia equivalente a 1 (um) salário mínimo até que complete 18
anos. Essa quantia será paga pelo genitor-estuprador, se for identificado; caso
não seja – o que acontece em muitos casos, naquilo que se chama “campo escuro”
ou “cifra negra” – o Estado deverá arcar com a pensão, é o que determina o parágrafo
único deste artigo. Estava permitida a criação de mais uma bolsa entre as
diversas já existentes: a bolsa-estupro.
Mas
“bateu um juízo” durante a discussão do projeto e a vítima do estupro que
engravidou não será mais obrigada a suportar a gravidez, podendo interrompê-la:
o projeto foi acrescido da frase “sem prejuízo do disposto no artigo 128”.
Porém, o artigo 13, § 2o, manteve a possibilidade da criação de mais
uma bolsa, que pode ser chamada de “bolsa-estupro”, pois nele está escrito que
o Estado arcará com os custos da saúde, educação, desenvolvimento e educação da
criança enquanto não for identificado o autor do estupro ou a criança for dada
em adoção, “se esta for a vontade da mãe”.
Como
é sempre saudável respeitar as palavras do pintor Apeles – “ne sutor supra
crepidam”, em vernáculo: “sapateiro, não vá além das sandálias” -, deixo aos
civilistas a análise, em primeiro lugar, da necessidade de que exista no Brasil
um estatuto como esse projetado, em segundo, se o nascituro necessita esse
nível de proteção, e, em terceiro, se está conforme com a técnica legislativa.
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