Edna, quando
foi julgada pelo Tribunal do Júri de Campinas, na segunda metade da década de
80, estava com AIDS: foi a primeira pessoa que eu defendi contaminada com essa
terrível moléstia (nos anos 2000 defendi outras; apenas em 2002 foram três pessoas).
E, naquela época, era tremendamente letal. Mas ela havia sobrevivido, inexplicavelmente, à doença e a acusação contra ela era de haver matado, durante uma briga, uma mulher que tinha uma vasta folha de
antecedentes, recheada de crimes contra o patrimônio; não faltavam crimes
contra a pessoa, na modalidade lesão corporal dolosa. Detalhe: a vítima não
tinha um braço.
Edna nunca
negou haver matado a vítima (portanto, em termos de autoria, não havia
discussão); afirmava, porém, tê-lo feito para defender-se de injusta agressão
perpetrada por aquela.
No dia do
julgamento, a minha tese seria obviamente a da legítima defesa própria. Porém,
o Ministério Público discordou, dizendo que houvera excesso[1] na
legítima defesa; disse que não tinha sido necessário matar para fazer cessar a
agressão injusta. No geral, o Promotor
concordou que havia uma situação inicial de legítima defesa, porém, no seu entender, houve
excesso na reação. Falou durante todo o tempo regulamentar (era característica
desse Promotor de Justiça, que era extremamente leal e respeitoso). Na minha
fala regulamentar, não utilizei todo o tempo dado à defesa, que é igual ao
tempo dado à acusação (creio nunca ter, nos inúmeros júris em que atuei, utilizado
todo o tempo). Mas destaquei aos jurados um detalhe: a vasta folha corrida da
vítima; estiquei-a no chão do plenário, para bem impressionar os jurados: era
enorme. E, completei, sendo politicamente incorreto: ela fez tudo isso com um
braço só; imaginem se ela tivesse os dois.
O Promotor
pediu a réplica, em que se podia falar mais trinta minutos. Era hábito no
Tribunal do Júri da comarca de Campinas o Juiz de Direito presidente acionar a campainha para lembrar
o profissional que estivesse falando, seja a acusação, seja a defesa, quando
faltavam dez minutos; depois novamente quando faltam cinco; e finalmente, quando
tinha se esgotado o tempo. E o Juiz fez isso. Após o último aviso, o de que tempo se
esgotara, o Promotor continuou falando e excedeu-se em cinco minutos. Ao me ser
dada a palavra, iniciei a minha fala chamando a atenção dos jurados para o fato
de que o Promotor, num ambiente tranqüilo e seguro como aquele, havia
deliberadamente cometido um excesso: como ele poderia pretender que os jurados
reconhecessem excesso na conduta da acusada – e a condenassem – durante uma
briga ocorrida à noite, num bairro afastado, contra uma pessoa com vasta folha de antecedentes? Havia
uma incongruência no pedido. O Promotor, percebendo que havia sido apanhado em sua própria armadilha, apenas sorriu. E logo encerrei a minha fala.
Levados
à sala secreta, os jurados absolveram Edna, reconhecendo que ela não agira com
excesso ao defender-se de injusta agressão, atual, a direito seu, no caso, o
direito à vida.
Excesso, no
caso, houve apenas o do Promotor de Justiça: excedeu-se no tempo que a lei
determina para que a acusação seja feita.
[1] . O excesso pode ser
classificado como doloso ou culposo; se for doloso, a pessoa, caso seja
condenada, será tida como se tivesse praticado um homicídio doloso; se for
culposo o excesso, o homicídio será culposo. As penas são grandiosamente
diversas; homicídio doloso: de 6 a 20 anos de reclusão; homicídio culposo: de 1
a 3 anos de detenção.
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