Pular para o conteúdo principal

Ricardão I


                        Era uma família feliz, composta de pai, mãe e filho em tenra idade. O marido trabalhava numa fábrica e cumpria, naquela época, o turno da noite. Numa segunda-feira, ele despediu-se da mulher e do filhinho e saiu para trabalhar, por volta de 22:00 horas. Depois de permanecer por pouco mais de uma hora no local de trabalho, solicitou à chefia do setor permissão para retirar-se, pois não estava se sentindo bem. Retornou à casa. Colocou a chave na fechadura: não conseguiu abrir a porta, pois estava com tranca. Bateu. A mulher atendeu. Abriu-a. Ele entrou. Foi direto ao quarto do casal, onde ficava também o berço do bebê. Um lençol tapava, estendido na armação do berço, impedia a visão da criança. Desconfiado, olhou embaixo da cama: ali estava um homem, sem camisa e sem sapatos, apenas de calça. Iniciou-se uma luta. O homem fugiu. Foi alcançado no quintal. O marido empunhava uma faca. O invasor conseguiu desvencilhar-se. Pulou o muro, indo para a rua. Foi novamente alcançado, debaixo de um poste de iluminação, e ali morto com diversas facadas no peito.
                        Ao receber as cópias xerográficas dos autos, já que não havíamos atuado na instrução, chamaram-me a atenção as cópias das fotos que acompanhavam o “laudo de levantamento de local” do Instituto de Criminalística, especialmente uma da vítima morta sob um poste, em decúbito dorsal: parecia que ela tinha uma tatuagem no tórax, na parte esquerda, sobre o mamilo esquerdo, na região do coração. Curioso, retirei os autos originais para ver a foto: aquilo que se assemelhava a um tatuagem era na verdade um buraco provocado pelas incontáveis facadas que tomara. A visão permitia quase adivinhar a fúria com que os golpes foram desferidos.
                        Designada a data de julgamento em plenário, lendo as cópias dos autos notei que na contrariedade ao libelo[1] fora arrolada a mulher do acusado; imaginei que a união houvesse sido desfeita após o fato. Contatei o acusado por carta, pedindo o seu comparecimento na AJ. No dia aprazado, foi anunciado que o réu ali estava, acompanhado do filho – já com alguns anos de vida em face da demora do processo – e de uma mulher, que julguei ser fruto de uma segunda união. Pedi que entrassem. Sem mais aquela, disse ao réu que a sua mulher na época havia sido arrolada e indaguei como faríamos para localizá-la. Ele, candidamente, disse que era aquela mesma que o acompanhava. Fiquei pasmo.
                        Continuando a indagar, quis saber a explicação que ela dera para a presença de um homem sob a cama do quarto do casal e com o lençol esticado sobre o berço tapando a visão da criança. Segundo ele, ela havia dito que o rapaz ali aparecera, pedira para entrar e, ao chegar o marido, ocultou-se sob a cama. Nenhuma explicação para o fato de estar aquele homem sem camisa e sem sapato (e sem meias, obviamente): não pude saber se ele estava despindo-se ou vestindo-se.
                        No dia do julgamento em plenário, o juiz indagou durante o interrogatório se ele ainda estava com aquela mulher que fora, por assim dizer, “o pivô” dos acontecimentos e ele respondeu, convicto: “graças a Deus, doutor”.
                        A minha tese foi de homicídio privilegiado, acolhida à unanimidade pelos jurados, com a imposição de 4 anos de reclusão para cumprimento no regime aberto desde o início.
                        O casal continua junto e, acredito, feliz. 




[1] . Contrarieadade ao libelo é a resposta do réu ao libelo, figura existente apenas nos crimes dolosos contra a vida (artigos 417 do Código de Processo Penal e 421, parágrafo único); mal comparando: é como se fossem a denúncia e a defesa prévia no processo ordinário ou comum. O CPP foi modificado nesse ponto: não existe mais o libelo, nem a contrariedade.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Uma praça sem bancos

Uma música que marcou época, chamada “A Praça”, de autoria de Carlos Imperial, gravada por Ronnie Von no ano de 1967, e que foi um estrondoso sucesso, contém uma frase que diz assim: “sentei naquele banco da pracinha...”. O refrão diz assim: “a mesma praça, o mesmo banco”. É impossível imaginar uma praça sem bancos, ainda que hoje estes não sejam utilizados por aquelas mesmas pessoas de antigamente, como os namorados, por exemplo. Enfim, são duas ideias que se completam: praça e banco (ou bancos). Pois no Cambuí há uma praça, de nome Praça Imprensa Fluminense, em que os bancos entraram num período de extinção. Essa praça é erroneamente chamada de Centro de Convivência, sendo que este está contido nela, já que a expressão “centro de convivência (cultural)” refere-se ao conjunto arquitetônico do local: o teatro interno, o teatro externo e a galeria. O nome Imprensa Fluminense refere-se mesmo à imprensa do Rio de Janeiro e é uma homenagem a ela pela ajuda que prestou à cidade de Campi...

Legítima defesa de terceiro

Um dos temas pouco abordados pelos doutrinadores brasileiros é o da legítima defesa de terceiro; os penalistas dedicam a ele uma poucas páginas, quando muito. Essa causa de exclusão da ilicitude vem definida no artigo 25 do Código Penal: “entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Nessa definição estão contidos os elementos da causa de exclusão em questão: uso moderado dos meios necessários; existência de agressão atual ou iminente; a direito seu ou de outrem. Como se observa facilmente, a defesa é um repulsa a uma agressão, ou seja, é uma reação a uma agressão, atual (que está acontecendo) ou iminente (que está para acontecer). Trata-se, a causa de exclusão em questão, de uma faculdade que o Estado põe à disposição da pessoa de defender-se pois em caso contrário a atuação estatal na proteção dos cidadãos tornar-se-ia inútil. Não é uma obrigação, é uma faculdade. Caso, na...

Câmeras corporais

A adoção da utilização de câmeras corporais por policiais militares gerou – e gera – alguma controvérsia no estado de São Paulo, tendo sido feita uma sugestão que mais lembra um pronunciamento de Eremildo, o Idiota (personagem criado por Elio Gaspari): “os soldados da força policial usariam as câmeras, mas as ligariam apenas quanto quisessem”. Essa tola sugestão tem como raiz o seguinte: nas operações em que pode haver alguma complicação para o policial ele não aciona a câmera; mas demais, sim. Apenas a título informativo, muitos países do mundo tem adotado essa prática: em algumas cidades, como, por exemplo, nos Estados Unidos, até os policiais que não trajam fardas estão utilizando esses aparatos. Mas, a meu ver, o debate tem sido desfocado, ou seja, não se tem em vista a real finalidade da câmera, que é a segurança na aplicação da lei penal, servindo também para proteger o próprio agente da segurança pública (tendo exercido, enquanto Procurador do Estado, a atividade de Defensor...