Pular para o conteúdo principal

A estrangeira

         O premio Nobel de literatura Albert Camus escreveu um livro belíssimo, e amargo, muito amargo, chamado "O estrangeiro", e a personagem deste artigo nem estrangeira é: ela nasceu no Brasil, filha de pais franceses e morava na Suíça havia muitos anos. Não se trata, portanto, de plágio do título. Vinda ao Brasil em 1991 para o velório do pai, cujo corpo foi cremado, ela, que pretendia levar as cinzas para espalhá-las em Genève, na fronteira da Suíça com a França, viu-se envolvida em um episódio que lembra outro premiado autor, Fanz Kafka ("O processo", "Metamorfose", "Na colônia penal", entre outros).

          Ela (vou chamá-la de Ana) chegou ao Aeroporto de Viracopos – nessa época era um aeroporto internacional de passageiros - para embarcar de volta à Suíça no mesmo momento em que, de maneira sub-reptícia, chegava um casal sul-americano, mas que somente a mulher tinha passagem aérea: o seu acompanhante já era um clandestino no próprio táxi que os trouxe do Aeroporto de Guarulhos, pois a corrida estava sendo paga pela companhia aérea apenas à mulher. O sul-americano componente daquele casal era um andrajoso, quase um mendigo, com trajes incompatíveis para quem viaja ao exterior via aérea. Enquanto a sul-americana era recepcionada pelo pessoal da companhia aérea, o seu parceiro esfrangalhado literalmente "encostou" em Ana, indagando-a acerca da fiscalização nas bagagens e quando estavam próximos das cabines da Polícia Federal, ela viu que o sul-americano roto, que depois se soube ser chileno, abaixava-se ao seu lado, exatamente na direção onde estava a sua bolsa de mão. Submetida à busca pessoal ("revista"), foi encontrada nessa mesma bolsa, na parte lateral externa, a irrisória quantidade de 2,673 gramas[1] de "maconha". Com o chileno nada foi encontrado; ele, porém, não pôde embarcar, pois portava passagem aérea expedida em nome de outra pessoa, uma mulher. A mulher que veio com ele escafedeu-se.
          Nem precisaria narrar o restante: Ana foi autuada em flagrante (para copiar Chico Buarque de Holanda: "como meliante"), e a própria autoridade policial que presidiu a lavratura do flagrante acreditava - disse-o por escrito - que o entorpecente fora colocado na bolsa de Ana por outra pessoa, por porte de entorpecente, pagou fiança e foi libertada para, solta, aguardar o julgamento. Contratou advogado e retornou para a Suíça, onde a esperava a sua filha de, à época, 5 anos de idade. Embora residindo em lugar certo, fora do Brasil, contudo, o seu chamamento ao processo, para defender-se, foi feito por edital no "Diário Oficial" (como se ele fosse lido no exterior: nem no Brasil muitas vezes ele é ...), que, não atendido, ensejou a decretação de sua revelia. Culminou o processo com a sua condenação a 6 meses de detenção com a suspensão da execução da pena ("sursis") por 2 anos, condicionada a suspensão a ela não se ausentar do Brasil (?!). Ah! ia me esquecendo: o seu advogado constituído não foi chamado para defendê-la. A sua defesa foi feita por Procurador do Estado.
          Ela, evidentemente, não seria procurada pessoalmente (e nem encontrada) para ser comunicada da suspensão da execução da pena e, mais uma vez, seria chamada por edital publicado no Diário Oficial. Não atenderia e seria cassado o "sursis", com a consequente decretação da sua prisão. Quando voltasse ao Brasil, seria presa. O sistema punitivo brasileiro tinha – e em alguns casos ainda tem – muito desse "faz-de-conta": cerra, como a deusa Têmis, os olhos a muitas evidências e contenta-se em fingir que reprime a criminalidade, punindo alguém que sequer teve a oportunidade de defender-se amplamente. Felizmente, nada disso ocorreu, pois a prescrição fulminou o poder-dever de punir.

(Capítulo do livro "Casos de júri e outros casos", Editora Millennium.)





[1] . Quantidade que posteriormente poderia levar ao reconhecimento do “princípio da insignificância”.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A assessora exonerade

Um fato tomou a atenção de muitos a partir de domingo quando uma assessora “especial” do Ministério da Integração Racial ofendeu a torcida do São Paulo Futebol Clube e os paulistas em geral. Um breve resumo para quem não acompanhou a ocorrência: a final da Copa do Brasil seria – como foi – no Morumbi, em São Paulo. A Ministra da Integração Racial requisitou um jato da FAB para vir à capital na data do jogo, um domingo, a título de assinar um protocolo de intenções (ou coisa que o valha) sobre o combate ao racismo (há algum tempo escrevi um texto sobre o racismo nos estádios de futebol). Como se sabe, as repartições públicas não funcionam aos domingos, mas, enfim, foi decisão da ministra (confessadamente flamenguista). Acompanhando-a veio uma assessora especial de nome Marcelle Decothé da Silva (também flamenguista). Talvez a versão seja verdadeira – a assinatura do protocolo contra o racismo – pois é de todos sabido que há uma crescente preocupação com o racismo nos estádios de fu

Por dentro dos presídios – Cadeia do São Bernardo

      Tão logo formado em Ciências Jurídicas e Sociais e tendo obtido a inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil, prestei auxílio num projeto que estava sendo desenvolvido junto à Cadeia Pública de Campinas (esta unidade localizava-se na avenida João Batista Morato do Canto, n° 100, bairro São Bernardo – por sua localização, era apelidada “cadeião do São Bernardo”) pelo Juiz de Direito da 2ª Vara Criminal (que cumulava a função de Corregedor da Polícia e dos Presídios), Roberto Telles Sampaio: era o ano de 1977. Segundo esse projeto, um casal “adotava” uma cela (no jargão carcerário, “xadrez”) e a provia de algumas necessidades mínimas, tais como, fornecimento de pasta de dentes e sabonetes. Aos sábados, defronte à catedral metropolitana de Campinas, era realizada uma feira de artesanato dos objetos fabricados pelos detentos. Uma das experiências foi uma forma de “saída temporária”.       Antes da inauguração, feita com pompa e circunstância, os presos provisórios eram “aco

Matando por amor

Ambas as envolvidas (na verdade eram três: havia um homem no enredo) eram prostitutas, ou seja, mercadejavam – era assim que se dizia antigamente – o próprio corpo, usando-o como fonte de renda. Exerciam “a mais antiga profissão do mundo” (embora não regulamentada até hoje) na zona do meretrício [1] no bairro Jardim Itatinga.             Logo que a minha família veio de mudança para Campinas, o que se deu no ano de 1964, a prostituição era exercida no bairro Taquaral, bem próximo da lagoa com o mesmo nome. Campinas praticamente terminava ali e o entorno da lagoa não era ainda urbanizado. As casas em que era praticada a prostituição, com a chegada de casas de família, foram obrigadas a imitar o bairro vermelho de Amsterdã:   colocar uma luz vermelha logo na entrada da casa para avisar que ali era um prostíbulo. Com a construção de mais casas, digamos, de família,   naquele bairro, houve uma tentativa de transferir os prostíbulos para outro bairro que se formava, mais adiante