Cícera era uma nordestina, com o típico perfil de muitas mulheres brasileiras que eram atendidas pela Assistência Judiciária: separada, com dois filhos da união anterior e morando na periferia. Trabalhava como cozinheira num restaurante.
Juntou-se a um novo companheiro, que não tinha filhos. Ele também trabalhava, porém gostava de, ao sair do emprego, parar no bar para beber com os amigos; chegava em casa bêbado e por qualquer motivo, ou mesmo sem motivo, aplicava uma surra em Cícera, indo depois dormir (certamente, não era o sono dos justos).
Cansada dessa vida de “saco de pancada”, ela, num dia em que ele a tinha surrado mais uma vez,, esperou que o companheiro e agressor se deitasse e adormecesse, jogou sobre ele um litro de álcool e ateou fogo, fugindo a seguir com os filhos. O companheiro, em chamas, foi socorrido por vizinhos, sofrendo diversas queimaduras graves, principalmente na região do tórax e do abdôme, mas sobreviveu.
Cícera foi denunciada por homicídio qualificado (qualificadora do emprego de fogo) tentado, pois a vítima não morreu. A pena cominada ao crime tentado é a mesma prevista ao crime consumado, mas sofre uma redução, devido à não consumação, entre um e dois terços (dependendo da quantidade de “iter criminis” percorrido). Foi pronunciada e designada data para o julgamento em plenário.
O Procurador do Estado que atuava perante a Vara do Júri havia sido transferido para a Vara da Infância e Juventude e como eu havia atuado em alguns atos processuais nesse caso, foi determinada a minha intimação para atuar no julgamento em plenário, embora eu estivesse momentaneamente afastado dessa atividade.
Imediatamente, tratei de tentar localizar Cícera: para minha surpresa, ela trabalhava como cozinheira em um restaurante na mesma rua em que eu morava no Cambuí, distante apenas umas poucas quadras. Procurei-a, apresentei-me e pedi a ela que fosse qualquer tarde à Assistência Judiciária para conversarmos. Ela foi. Narrou o inferno que era a sua vida, as surras que tomava, chegando até a falar em “assédio sexual” contra uma filha pequena.
No dia do julgamento em plenário, a vítima foi ouvida. Relatou que não se lembrava das surras que aplicava em Cícera, pois fazia isso quando estava bêbado e esquecia o que fazia nesse estado. Perguntei se ele esquecia de pagar a conta da bebida que consumia e ele respondeu que isso não era problema, pois conhecia o dono do bar e, se esquecesse, pagaria no dia seguinte.
O Promotor de Justiça pediu a condenação, obviamente. A minha tese foi de desclassificação para lesão corporal, pois não estava presente o dolo de homicídio: embora ela tivesse usado um meio altamente lesivo, como é o fogo, apenas por esse dado objetivo não se poderia concluir que ela queria a morte do companheiro. O Promotor foi para a réplica, falando mais meia hora. Fiz a tréplica, reforçando os argumentos.
Os jurados, por cinco votos a dois, aceitaram a tese da defesa, desclassificando para lesão corporal, que, no caso, deveria ser grave, a que causa deformidade permanente: as cicatrizes resultantes das queimaduras eram realmente de impressionar, mas, para serem vistas, era necessário que ele tirasse a camisa. Como a doutrina e a jurisprudência exigem que em caso de lesão corporal grave que cause deformidade permanente o laudo de exame de corpo de delito venha acompanhado de fotografias e estas inexistiam, o juiz desclassificou para lesões corporais leves, aplicando somente a pena de multa, dez dias multa.
O Ministério Público recorreu e o Tribunal de Justiça deu provimento parcial, respeitando a manifestação dos jurados, apenas para reconhecer que a lesão corporal era grave e não leve, aplicando-lhe a pena de reclusão, 2 anos, a ser cumprida integramente no regime aberto. Como havia passado um tempo entre os termos interruptivos superior a 4 anos, houve a extinção da punibilidade pela prescrição: requerida, o Juiz de Direito prontamente reconheceu-a.
Tal fato ocorreu na mesma época em que três rapazes em Brasília atearam fogo num índio, matando-o, mas a situação daqui de Campinas era mais facilmente compreensível aos jurados.
Juntou-se a um novo companheiro, que não tinha filhos. Ele também trabalhava, porém gostava de, ao sair do emprego, parar no bar para beber com os amigos; chegava em casa bêbado e por qualquer motivo, ou mesmo sem motivo, aplicava uma surra em Cícera, indo depois dormir (certamente, não era o sono dos justos).
Cansada dessa vida de “saco de pancada”, ela, num dia em que ele a tinha surrado mais uma vez,, esperou que o companheiro e agressor se deitasse e adormecesse, jogou sobre ele um litro de álcool e ateou fogo, fugindo a seguir com os filhos. O companheiro, em chamas, foi socorrido por vizinhos, sofrendo diversas queimaduras graves, principalmente na região do tórax e do abdôme, mas sobreviveu.
Cícera foi denunciada por homicídio qualificado (qualificadora do emprego de fogo) tentado, pois a vítima não morreu. A pena cominada ao crime tentado é a mesma prevista ao crime consumado, mas sofre uma redução, devido à não consumação, entre um e dois terços (dependendo da quantidade de “iter criminis” percorrido). Foi pronunciada e designada data para o julgamento em plenário.
O Procurador do Estado que atuava perante a Vara do Júri havia sido transferido para a Vara da Infância e Juventude e como eu havia atuado em alguns atos processuais nesse caso, foi determinada a minha intimação para atuar no julgamento em plenário, embora eu estivesse momentaneamente afastado dessa atividade.
Imediatamente, tratei de tentar localizar Cícera: para minha surpresa, ela trabalhava como cozinheira em um restaurante na mesma rua em que eu morava no Cambuí, distante apenas umas poucas quadras. Procurei-a, apresentei-me e pedi a ela que fosse qualquer tarde à Assistência Judiciária para conversarmos. Ela foi. Narrou o inferno que era a sua vida, as surras que tomava, chegando até a falar em “assédio sexual” contra uma filha pequena.
No dia do julgamento em plenário, a vítima foi ouvida. Relatou que não se lembrava das surras que aplicava em Cícera, pois fazia isso quando estava bêbado e esquecia o que fazia nesse estado. Perguntei se ele esquecia de pagar a conta da bebida que consumia e ele respondeu que isso não era problema, pois conhecia o dono do bar e, se esquecesse, pagaria no dia seguinte.
O Promotor de Justiça pediu a condenação, obviamente. A minha tese foi de desclassificação para lesão corporal, pois não estava presente o dolo de homicídio: embora ela tivesse usado um meio altamente lesivo, como é o fogo, apenas por esse dado objetivo não se poderia concluir que ela queria a morte do companheiro. O Promotor foi para a réplica, falando mais meia hora. Fiz a tréplica, reforçando os argumentos.
Os jurados, por cinco votos a dois, aceitaram a tese da defesa, desclassificando para lesão corporal, que, no caso, deveria ser grave, a que causa deformidade permanente: as cicatrizes resultantes das queimaduras eram realmente de impressionar, mas, para serem vistas, era necessário que ele tirasse a camisa. Como a doutrina e a jurisprudência exigem que em caso de lesão corporal grave que cause deformidade permanente o laudo de exame de corpo de delito venha acompanhado de fotografias e estas inexistiam, o juiz desclassificou para lesões corporais leves, aplicando somente a pena de multa, dez dias multa.
O Ministério Público recorreu e o Tribunal de Justiça deu provimento parcial, respeitando a manifestação dos jurados, apenas para reconhecer que a lesão corporal era grave e não leve, aplicando-lhe a pena de reclusão, 2 anos, a ser cumprida integramente no regime aberto. Como havia passado um tempo entre os termos interruptivos superior a 4 anos, houve a extinção da punibilidade pela prescrição: requerida, o Juiz de Direito prontamente reconheceu-a.
Tal fato ocorreu na mesma época em que três rapazes em Brasília atearam fogo num índio, matando-o, mas a situação daqui de Campinas era mais facilmente compreensível aos jurados.
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